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O Livro e a Leitura Hoje



Prof. Erlon Paschoal

Nosso biorritmo individual, influenciado pela aceleração crescente de nossa engrenagem social, antepõe-se ao processo arcaico de ler com a calma necessária para se refletir. Há muito, somos contagiados pela impaciência, pela inquietação que exige uma distração cada vez mais intensa, frente a estímulos cada vez mais fortes. A leitura atenta exige uma estrutura temporal específica, contrária à aceleração implacável da Modernidade. Um dos motores deste ritmo acelerado, no que se refere à produção pseudo-artística, é a televisão. Este meio de comunicação fornece ao espectador tudo aquilo de que ele necessita e para o qual ele foi adestrado e condicionado: velocidade, distração, adaptação total dos sentidos da visão e da audição. Peter Schneider, escritor alemão contemporâneo, chega até mesmo a falar em “ditadura da velocidade”. E tudo isso fazendo uso de um meio roubado à literatura: a narrativa. Geralmente, a televisão adota a estrutura de uma narrativa com começo, clímax e catarse final. Num ritmo que um leitor jamais conseguiria acompanhar se quisesse ler a mesma história em forma de livro. A leitura do objeto livro e a escrita, segundo muitos estudiosos, têm, por isso, perdido importância junto às novas gerações.

Mas será que alguém que introjetou o modo de recepção da televisão necessariamente tem de sentir tédio ao ler um livro? Sua expectativa pode não ser satisfeita de imediato, pois o livro exige uma outra forma de abordagem, exige o uso da imaginação e da memória, do discernimento e da comparação. Ler, tal como escrever, pressupõe, sobretudo o ato de descobrir. A literatura, pois, vive de sua ambivalência: é vida e entretenimento, é aprendizagem de uma maneira de pensar mais diferenciada e puro exercício lúdico.

Heinrich Mann escreveu que “os livros de hoje são os atos de amanhã”, daí o seu significado especial enquanto formador da personalidade e da ética humana. Goethe, Schiller e Jean Jacques Rousseau, por exemplo, consideravam o livro um instrumento extremamente eficaz no processo de formação do indivíduo. Goethe, na Alemanha, criou o chamado Bildungsroman (romance de formação), no qual o herói “aprende a viver” num mundo sempre adverso. Schiller reivindicou a ästhetische Erziehung (educação estética), que almejava ensinar por meio da literatura e do teatro as noções básicas da existência, ou seja, a verdade, o bem e o belo. Jean Jacques Rousseau, na França, com sua “Nova Heloísa” e seu “Emílio”, compartilhou também ideais semelhantes. Era uma forma de educação do espírito e da sociabilidade.

Jorge Luis Borges considerava o livro uma extensão da memória e da imaginação. Para ele a Biblioteca – um local quase mágico povoado pela imaginação humana – seria a memória da humanidade. Em suas aulas aconselhava os alunos a não lerem críticas, e sim as próprias obras em questão. Talvez compreendam pouca coisa, dizia, mas sentirão um prazer único e estarão ouvindo a voz de alguém, já que cada autor tem a sua voz. E, sobretudo, pedia que lessem somente o que lhes agradasse, afinal a leitura atenta e concentrada é uma das “formas de felicidade”.

Os antigos, no entanto, não professavam o culto ao livro. Os primeiros grandes sábios foram mestres orais, tais como Homero, Sócrates e Jesus. A oralidade foi, assim, a base da literatura. Por outro lado, o registro das experiências e sonhos no papel converte-se em algo quase sagrado, um modo de propagar conhecimentos adquiridos de uma geração à outra. Por esta razão, os livros seriam como que verdadeiros milagres.

Para Platão, os livros assemelhavam-se a seres vivos, mas que infelizmente não dão qualquer resposta quando lhes perguntamos algo. Então, talvez para corrigir esta mudez dos livros, ele inventou o diálogo platônico. Ao abrirmos um livro, participamos de uma conversa, iniciada com o surgimento de nossa espécie, da qual tomamos parte compartilhando emoções e sutilezas da alma humana registrada ao longo dos tempos. Mais ainda – somos responsáveis pela continuidade destes elos que nos fazem sentir parte da humanidade. Borges considerava uma de suas principais funções como escritor fazer ecoar o que o mestre Homero disse... “O livro pode estar cheio de coisas erradas, podemos não estar de acordo com as opiniões do autor, mas, mesmo assim, ele conserva alguma coisa de sagrado, algo de divino, não para ser objeto de respeito supersticioso, mas para que o abordemos com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria”.

Para Emerson, nos livros encontram-se os melhores espíritos da humanidade, que esperam o nosso gesto para saírem de sua mudez. W.B. Yeats via o livro como depositário da Grande Memória, razão pela qual ele estaria então na contramão da História, já que os meios de comunicação cultivam o fútil e o efêmero, estimulando o público a não reter nada, a esquecer-se imediatamente de tudo o que acabou de ser visto, algo que amenizaria em parte o peso da realidade. Mas – valem de novo as reflexões de Borges - a arte não foi feita para distrair, mas para ligar (religar) o homem consigo mesmo, com o mundo em que vive, com o universo. Esta é a sua função primordial.

Nesse contexto, como levar o indivíduo a se aproximar da leitura e da escrita; que estratégias seriam eficazes para estimular a prática da oralidade e do texto, base da organização do pensamento e da leitura, recuperando assim a força da palavra? Não se trata aqui de se opor às novas tecnologias, que para muitos conduzirão ao fim de determinados suportes da memória humana, tais como o livro, o quadro, a escultura, o cd etc, mas de integrar-se às novas formas de expressão culturais virtuais e interativas, inserir-se no ciberespaço, nas redes telemáticas e nos hipertextos etc. com conteúdos que privilegiem a palavra, a memória e a reflexão. Seria possível? O tempo de criação e o tempo de fruição tenderiam então a serem simultâneos? São enfim inúmeros os desafios de quem pensa o presente e o futuro em busca de caminhos para compatibilizar as novas mídias com um senso estético apurado, com a reflexão crítica e o exercício pleno da memória e da imaginação.

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Erlon José Paschoal é diretor de teatro, dramaturgo e tradutor literário, fundador do grupo de teatro Brancaleone (1975). Desenvolve periodicamente projetos em parceria com o Brasilianisches Kulturinstitut in Berlin (Instituto Cultural Brasileiro em Berlim) e é gerente da Secretaria de Políticas Culturais do Ministério da Cultura do Brasil.


Publcado em 02/07/2007 Atualizado em 25/07/2010

Fonte: Carta Maior, Arte & Cultura, dislponível in internet www.cartamaior.com.br. Acesso em 20/06/2007.

Para referir: Paschoal, EJ, 2007 in internet, www.marcosmaximino.psc.br. Acesso em dd/mm/aaaa.

 

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